Carta aberta ao público

Os Bandidos da Lei e a Lei dos Bandidos

As Leis não foram criadas para prender bandidos mas sim para proteger inocentes do poder persecutório do Estado

“Il n’y a point de plus cruelle tyrannie que celle que l’on exerce à l’ombre des lois et avec les couleurs de la justice”

“Não há mais cruel tirania do que aquela exercida à sombra das leis e com as cores da justiça.”

Montesquieu

Uma sociedade cansada do descaso político com as necessidades de uma população cada vez mais desamparada é terreno fértil para que agentes do estado se utilizem do aparato persecutório estatal para entregar resultados rápidos exigidos pela desesperança popular e assim se auto proclamarem os heróis salvadores da pátria.

A histeria da opinião pública inebriada pelas prisões midiáticas revestidas de uma pretensa efetividade no combate a corrupção, vai dando cada vez mais legitimidade onde não existe e os agentes do estado se sentem cada vez mais legitimados por suas ações ilegítimas. Um pedido de prisão provisória ou preventiva formulado pelo órgão investido do poder acusatório passa a ser inquestionável, e a autorização de um juiz ao pedido de prisão é a confirmação, aos olhos da opinião pública, de uma condenação definitiva.

Ao longo da história, as sociedades organizadas aprenderam que o poder do estado, caso não seja controlado, leva a arbitrariedades contra seu próprio povo, pois, em algum momento, determinado pelo afrouxamento da vigilância popular, os agentes do estado se veem tentados a perseguir, não só os bandidos, mas desafetos políticos ou qualquer um que ameace interesses pessoais daqueles que deveriam zelar dos interesses públicos.

Essas experiências sofridas na maior parte das vezes com o custo da própria vida, fizeram com que as sociedades criassem ao longo do tempo freios ao poder estatal para que cidadãos inocentes não fossem perseguidos sob o pretexto de resultados efetivos na perseguição de bandidos. Regras cada vez mais rígidas e detalhadas foram sendo formuladas, não para proteger os bandidos, mas sim os inocentes.

Na idade moderna, o iluminismo trouxe o núcleo central dos direitos e garantias fundamentais do indivíduo, garantias de que nenhum homem livre pudesse ser detido ou aprisionado, tampouco despojado de suas liberdades nem posto fora da lei, nem exilado, nem molestado, senão em virtude de sentença. Exceções foram criadas em casos de flagrante perigo para a sociedade para que prisões pudessem ser efetivadas sem a necessidade de uma sentença definitiva. Com a evolução, códigos foram formulados para limitar o poder persecutório do estado na proteção de inocentes.

A nomenclatura “código” não é à toa, assim como temos um código de honra temos um código de processo penal, um conjunto de princípios, normas e regras claras e rígidas para que o aparato persecutório do estado não avance sobre nossas garantias e direitos individuais.

“Tout homme qui a du pouvoir est porté à en abuser”
“Todo homem investido de poder é tentado a abusar dele.”

“O Espírito das Leis” – Montesquieu

As técnicas de investigação moderna encontravam uma barreira, não intransponível, mas que exigia inteligência e conduta ética para formular uma acusação contra investigados por crime de organização criminosa.

Com a sanção em 2013 da Lei no 12.850, conhecida popularmente como lei de delação premiada, o aparato persecutório do estado, perpetrado por alguns agentes, viu na lei a possibilidade de chegar aos resultados da acusação sem necessariamente a utilização de inteligência e muito menos de conduta ética. Investigação era um luxo para aqueles sem arcabouço intelectual, que unidos a ausência de arcabouço ético passaram a ter visibilidade pelos resultados aparentemente positivos.

Na história recente do Brasil, e ainda presente, a grande mídia bombardeava diariamente a espetacularização das ações policiais midiáticas, isso criou cada vez mais apoio na opinião pública que legitimava cada vez mais o descumprimento das leis por parte daqueles que deveriam cumprí-las.

O apoio irrestrito da opinião pública teve um papel fundamental, sem imaginar que ao delegar os poderes para descumprir a lei a um juiz e meia dúzia de procuradores, estariam delegando isso a todos os agentes do estado brasileiro, milhares de juízes, procuradores e agentes de segurança.

Na ditadura militar quando o presidente Costa e Silva decretou o Ato Institucional 5, na reunião ministerial, o único voto contrário foi do vice-presidente Pedro Aleixo, que alegou, premonitoriamente:

“O problema de uma lei assim não é o senhor, nem os que com o senhor governam o país. O problema é o guarda da esquina”.

Envaidecidos pelo apoio popular e pelo poder investido, os agentes do estado sem a necessidade do cumprimento da lei, passaram a utilizar técnicas medievais de investigação, “prenda, torture e condene”. Nem o código de processo penal era cumprido nem a lei de delação premiada. Os requisitos para prisão preventiva previstos no código eram relegados e as provas ou caminhos de obtenção de provas previstos na lei de delação também. Para prender e manter preso bastava agora apenas a palavra de um bandido, que no afã de se ver livre de seus crimes falava o que no momento soava como música aos ouvidos dos agentes do estado.

Na santa inquisição pessoas passaram a ser queimadas nas fogueiras
acusadas de bruxaria apenas pelo apontamento de qualquer pessoa.

Uma vizinha falou a noite durante um sonho? Bruxa, feiticeira!

Denunciada ia para a fogueira sem qualquer investigação, prova ou processo legal. A sentença e a punição eram dadas pela simples fala de um popular.

A Operação Lava Jato inaugurou nossa inquisição moderna, sem qualquer escrúpulo seus integrantes jogavam carne aos leões, a opinião pública vibrava a cada nova prisão. Fogueira para esses corruptos! O estado democrático de direito passou a ser uma abstração na cabeça dos românticos. Garantias individuais? Devido processo legal? Nada, a histeria popular queria sangue.

Com capa de herói e poder sem controle, policiais, procuradores e juízes jogavam para a plateia e aproveitavam o momento para perpetrar uma motivação, agora não mais por justiça, mas sim por interesses políticos e pessoais. Eu jamais poderia imaginar que algum dia eu mesmo pudesse ser vítima de uma injustiça criada pelo ambiente da Lava Jato.

Comecei a trabalhar aos 10 anos, aos 12 consertava brinquedos já com carteira assinada. Aos 15 entrei no Banco América do Sul, aos 19 anos servi no esquadrão de busca e salvamento da Força Aérea Brasileira, aos 21 fui trabalhar no Japão como operário em uma empresa do grupo Mitsubishi, aos 23 anos entrei na Xerox do Brasil e 2 anos depois me tornei o executivo mais jovem da empresa onde permaneci por mais 13 anos, aos 36 abri minha empresa de investimentos e aos 42 anos abri junto com outros dois sócios uma empresa de assessoria a processos de Fusões & Aquisições.

Minha empresa foi contratada em 2012 para fazer o “sell side” de uma empresa que havia recebido uma abordagem de compra por parte de uma importante e grande empresa do mercado financeiro. Porém, essa e outras intenções de compra não se concretizaram e em meados de 2013 fui acionado pela mesma empresa para a realização de uma extensa auditoria interna. Laudo entregue em meados de 2014, minhas recomendações foram as já conhecidas por empresas sérias. Implantação de um novo estatuto social com todas as normas da melhor prática de governança corporativa, código de ética, profissionalização da gestão, etc.

Após as recomendações, um assédio por parte do acionista controlador se iniciou para que eu mesmo me tornasse o presidente da empresa. Resisti as três primeiras investidas, mas por fim, vislumbrando a possibilidade de fazer algo relevante como cidadão, aceitei sob as condições de que eu teria carta branca para implementar tudo aquilo que meu próprio laudo de auditoria recomendava à empresa. As condições de remuneração que levantei junto a Michael Page, reconhecida como uma das melhores e maiores empresas de recrutamento de executivos do mundo, para que fossem utilizadas na profissionalização da empresa, foram utilizadas na minha contratação.

Em janeiro de 2015 assumi a presidência da empresa e no dia 10 do mesmo mês notifiquei que cancelaria unilateralmente um contrato de SCP – Sociedade em Contas de Participação – que julguei irregular, não havia contraprestação de serviço para pagamentos mensais entre seiscentos mil e um milhão de reais. O objeto do contrato era uma concessão pública que a empresa detinha com o estado. No dia 20 de janeiro, conforme informado na notificação, encerrei unilateralmente o contrato. No mês seguinte me reuni com o presidente do órgão estatal e repactuei espontaneamente uma nova divisão do faturamento. A condição ganha na licitação em 2009 era de 10% para o estado e 90% para a empresa. Acordei e assinei um termo aditivo com uma nova divisão de 50% para o estado e 50% para a empresa. Devolvi para os cofres públicos o que a empresa da SCP levava sem contraprestação de serviço alguma.

Em meados de 2016 saí da empresa. Deixei a mesma com um faturamento 80% menor, mas na certeza de que os 20% que restaram eram lícitos. Dos 5 contratos que ela detinha com governos estaduais ficou ativo apenas um. Os outros foram cancelados porque me recusei a receber emissários que não tinham relação nenhuma com os contratos que a empresa detinha com outros governos.

Já havia agido de forma parecida quando fui executivo da Xerox do Brasil. É da minha índole não só ser contra atos ilícitos, como combatê-los de forma efetiva quando investido de condições para isso. Na minha trajetória profissional eliminei a corrupção sempre que ela se mostrou à minha frente, nunca fugi da minha responsabilidade. Combati de forma efetiva a corrupção e sofri as consequências por isso. Nesse relato aqui sofri duas ameaças de morte e ando até hoje de carro blindado.

Por que conto isso aqui? Por que pode parecer surreal. Por minhas atitudes, todas publicamente registradas em notificações, contratos, termos aditivos e, pasmem, processos da empresa da SCP pedindo na justiça o retorno da propina, esperava um reconhecimento do estado. Mas, em 09 de maio de 2018, dois anos após ter deixado a presidência da empresa, fui preso, humilhado e permaneci na cadeia por incríveis 80 dias. Uma delação visando atingir o governador em exercício foi montada pelo Ministério Público junto com os acionistas da empresa que presidi, sem provas nem caminhos de obtenção de prova. Detalhe, o depoimento que embasou a delação foi dado 12 dias após eu mesmo enviar ao MP provas com o caminho do dinheiro. Provas de que a delação já nascia mentirosa. Provas engavetadas por conveniência política. Provas enviadas após duas recusas do MP em me receber para esclarecimentos. Estranhamente o Ministério Público se recusou receber para esclarecimentos uma pessoa que foi presidente da empresa, que no mínimo teria informações para ajudar na investigação, e cujos atos em favor do estado eram públicos e oficiais.

Quando querem transformar
Dignidade em doença
Quando querem transformar
Inteligência em traição
Quando querem transformar
Estupidez em recompensa
Quando querem transformar
Esperança em maldição É o bem contra o mal
E você de que lado está?

Legião Urbana

Durante os 80 dias em que fiquei preso, mensagens chegavam constantemente até mim por diversos meios, presos que iam ao fórum para depoimentos, advogados de outros presos que visitavam a penitenciária, etc. O recado era explícito: “avisa o japonês que ele só sai da cadeia se fizer uma delação”. Tortura medieval. Queriam atingir o governador e eu era a peça no caminho do enredo montado por eles.

Após minha soltura, ainda permaneci por mais de um ano sob medidas cautelares que me impediam de sair de casa e de trabalhar, praticamente uma prisão domiciliar. Provas para essa arbitrariedade? Até hoje nenhuma. Tudo embasado somente na fala dos delatores. Eles soltos mesmo após confessarem ter desviado 30 milhões de reais entre 2009 e 2014. Eu? Preso, humilhado e com a vida destruída por devolver ao estado via termo aditivo aproximadamente 23 milhões de reais nos três próximos anos da vigência do contrato a partir de minha entrada em 2015.

Faço aqui um “mea culpa”. Como cidadão apoiei por algum tempo essa sanha justiceira, participei de passeatas em apoio a Operação Lava Jato, a população toda estava unânime e não dei ouvidos aos amigos juristas que me alertaram do perigo que estava em curso. Afinal seria impossível algo parecido acontecer comigo, nunca cometi nenhum crime, pelo contrário, havia combatido vários.

Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro
Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário
Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável
Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei
Agora estão me levando
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo.

Bertolt Brecht

O caso do reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, Luis Carlos Cancellier, nos ensina o fim trágico que uma acusação sem provas pode produzir. Nos ensina o poder de tirar vidas que têm agentes de estado inescrupulosos em busca de notoriedade. Nos ensina que tudo isso só foi possível porque a opinião pública insuflada pela grande mídia produziu essa aberração.

Minha trajetória profissional desde os 10 anos sempre foi destacadamente ilibada, mas aos 49 anos fui preso, fui pessoal e profissionalmente destruído com a utilização da “lei”. Minha imagem que até então era de um profissional de credibilidade e sucesso passou a ser de um corrupto. Fui retirado de minhas empresas por sócios que mesmo sabendo das mentiras e injustiças se aproveitaram do momento para tirar vantagem. Dava entrevistas praticamente toda semana para os telejornais da Rede Globo, depois nunca mais fui procurado. Era professor de finanças no Ibmec há 10 anos, nunca recebi uma ligação da instituição ao menos para pedir explicação, nunca mais fui chamado a dar aulas. Quando você tem sua imagem associada a atos ilícitos reprovados pela sociedade você se torna um leproso, ninguém quer aparecer ou estar ao seu lado. Você é condenado antes mesmo da denúncia, reverter o estrago é praticamente impossível.

Como se não bastasse o show de absurdos e arbitrariedades, recebi no final de 2021 uma nova notificação judicial, o Ministério Público abriu contra mim um processo por improbidade administrativa, embasado no mesmo processo criminal absurdo e sem provas. Qualquer jurista minimamente preparado teria dúvidas quanto a capacidade técnica de quem produziu a peça acusatória, acharia hilário, mas não é brincadeira, por mais inócua que seja ela causa estragos irreparáveis na vida do acusado. É o poder persecutório do estado a serviço da incompetência e da má-fé, destruindo vidas.
A opinião pública colocou os agentes do estado fora do alcance das leis quando apoiou a derrubada da lei de abuso de autoridade. A sociedade deu o poder para descumprir as leis sem qualquer sanção a quem o fizer.

A depressão me acompanha desde o ocorrido em 2018, minha resiliência tem me mantido vivo. Após passar 80 dias preso e mais de um ano sem poder sair de casa e trabalhar, foi na internet que encontrei a única forma de sobrevivência. Essa exposição pública reabriria a ferida a cada vez que alguém pesquisasse meu nome, mas decidi não me esconder nem me esquivar, pelo contrário, hoje sou reconhecido nas redes sociais pelo meu conhecimento e pela minha experiência profissional. Transmitir meus conhecimentos para mais de 260 mil seguidores no YouTube foi a forma que encontrei para sobreviver emocionalmente ao caos e ao trauma que sofri, pois faço o que amo, educar.

Ao longo da educação de meus filhos, tenho cinco, sempre reforcei um mantra para eles: “Podem te tirar tudo, menos o seu conhecimento, uma vez aprendido ele será para sempre seu e ninguém poderá tirá-lo de você”. Conhecimento foi o que me restou, tudo mais me foi arrancado.

Descaso com a vida alheia, humilhação, perseguição sem qualquer embasamento na realidade e nos fatos. Sem qualquer prova. Apenas o desejo de aparecer quando menos, e quando mais, para a obtenção de objetivos outros que não a justiça. Foi isso que levou o reitor Cancellier a tirar a própria vida. Era enxovalhado pelos próprios alunos quando ia à universidade e nas ruas era hostilizado por populares. Como deixado em mensagem antes do seu suicídio, ele aos 60 anos não viu possibilidades de limpar sua honra nos próximos 60.

Os Bandidos da Lei e a Lei dos Bandidos é o título do meu livro contando essa história, será lançado em breve. Lá estará não só meu relato, mas todos os documentos e provas mostrando quem está do lado da verdade.

Disseste que se tua voz tivesse força igual
À imensa dor que sentes
Teu grito acordaria
Não só a tua casa
Mas a vizinhança inteira

Legião Urbana

Nesse traumático evento descobri de forma profunda a força e o amor da minha esposa, sua resiliência e a influência da sua inteligência e perspicácia na condução ao sucesso da minha defesa nos dias de cárcere. Meus filhos me visitavam na penitenciária e o amor deles nos tornou mais próximos. Posso contar nos dedos de uma mão os verdadeiros amigos e descobri o caráter das pessoas que eu antes julgava idôneas e fiéis. Fiquei muito mais próximo da minha família que sempre esteve ao meu lado me defendendo e tentando me levantar. No mais, os ratos sempre são os primeiros a abandonar o barco. O lado bom de tudo isso? Ficar longe dos ratos.

José Kobori